A durabilidade de tênis de corrida sempre foi um assunto cercado de dúvidas. Enquanto alguns corredores seguem a regra dos 600km como se fosse incontestável, outros acreditam que o conforto é o melhor marcador para decidir quando trocar o calçado. No entanto, pesquisas recentes mostram que a realidade é um pouco mais complexa. Além disso, existe um componente que quase nunca entra na conversa: a adaptação do corpo ao desgaste do tênis. Por isso, resolvemos trazer ao blog uma análise completa baseada na tese de doutorado apresentada por Eduardo Wust e debatida com o Prof. Jefferson Loss durante nossa live.
A ciência por trás da durabilidade de tênis de corrida
A discussão ganhou força porque o estudo apresentado acompanhou 19 corredores experientes ao longo de mais de dois anos. Todos utilizaram dois modelos idênticos no cabedal, mas com entressolas de densidades diferentes, o que permitiu observar efeitos biomecânicos de forma comparada. Além disso, os testes foram aplicados em três momentos: com o tênis novo, após 300km e depois de 600km.
Esse desenho de estudo é importante porque, diferentemente de análises feitas apenas com testes laboratoriais pontuais, ele observou o impacto do uso contínuo e real do calçado. Isso aumenta a aplicabilidade prática dos resultados, algo que costuma ser decisivo na corrida.
Entressola macia ou rígida: o que muda com o tempo
A durabilidade de tênis de corrida sempre foi associada à “fadiga” da entressola. Entretanto, ao comparar as versões macia e rígida ao longo dos meses de uso, os pesquisadores perceberam que as mudanças mecânicas não se traduziram automaticamente em maior impacto ou piora da pronação. Pelo contrário. Embora o material tenha perdido propriedades, a resposta biomecânica dos corredores não seguiu a mesma direção.
Isso aconteceu porque o corpo realizou pequenos ajustes ao longo da rodagem. Esses ajustes foram sendo incorporados gradualmente, o que explica por que muitos corredores não percebem mudanças bruscas mesmo quando o calçado já passou de 500km.
Adaptação neuromecânica: o ponto que muda tudo
A descoberta mais relevante foi a adaptação neuromecânica. À medida que o tênis perde amortecimento e rigidez, o corredor adapta a forma de tocar o solo, ajusta a ativação muscular e altera discretamente a mecânica de corrida. Embora isso aconteça de forma inconsciente, o efeito é claro: a carga é redistribuída, reduzindo o impacto direto dos efeitos do desgaste do calçado.
Essa adaptação não significa que o corredor possa usar o mesmo par para sempre. No entanto, mostra que o corpo cria estratégias eficientes para lidar com alterações graduais, o que explica a ausência de diferenças significativas nos ângulos de pronação e nas forças de impacto ao longo dos 600km avaliados.
Pressão plantar: um resultado que contraria a expectativa
Quando pensamos na durabilidade de tênis de corrida, é intuitivo imaginar que a pressão plantar aumente conforme a entressola perde eficiência. No entanto, os dados mostraram o contrário. A pressão diminuiu com o tempo. Isso ocorreu porque a palmilha e a entressola passaram a se moldar ao formato do pé, aumentando a área de contato e, em consequência, distribuindo melhor a carga. Portanto, o desgaste não necessariamente significa maior sobrecarga, como muitas vezes se imagina.
Afinal, quando trocar o tênis de corrida?
Aqui entra a resposta que mais interessa ao corredor. Embora os 600km sejam uma referência comum, o estudo deixa claro que esse número não deve ser seguido de forma rígida. O peso do corredor, o volume semanal, o tipo de terreno e até a técnica individual influenciam o desgaste.
Além disso, como o corpo se adapta, o critério “quilometragem” não é suficiente sozinho. Por isso, o conforto torna-se um indicador muito útil. No estudo, inclusive, o tênis macio foi considerado mais confortável após 600km, mesmo tendo perdido propriedades mecânicas de forma significativa. Isso mostra que, embora os materiais mudem, a percepção do corredor continua sendo valiosa.
Ainda assim, é essencial observar sinais como dores novas, desconfortos que não existiam ou alterações na sensação de apoio. Esses sintomas sugerem que a adaptação neuromecânica chegou ao limite e que o momento de substituição pode ter chegado.
O que esse estudo muda na prática?
A durabilidade de tênis de corrida passa a ser entendida não só como a resistência do material, mas como a interação entre o corredor e o calçado ao longo do tempo. Isso abre espaço para decisões mais individualizadas e menos baseadas em regras fixas.
Além disso, a conversa com Loss e Wust destacou como a biomecânica clínica está evoluindo. Com sensores cada vez mais acessíveis e o uso crescente de inteligência artificial, será possível quantificar a interação corredor-tênis em tempo real. Isso pode transformar recomendações genéricas em orientações específicas para cada atleta.
Conclusão
A durabilidade de tênis de corrida não deve ser tratada como um número universal. O estudo reforçou que o corpo possui capacidade de adaptação e que o desgaste não provoca, automaticamente, mudanças negativas na mecânica da corrida. Dessa forma, vale considerar fatores como conforto, histórico de lesões e sensação durante os treinos antes de decidir quando aposentar o seu par.
